Monday, September 17, 2007

Era uma vez

Inspirava longas golfadas de ar, expelindo-as de seguida com força. Queria libertar a frustração que lhe pesava nos pulmões e restantes órgãos. Vinha a acumulá-la há já largos anos, talvez mesmo duas dezenas. A primeira pontada, tinha-a sentido no verão em que começou a distinguir os colegas rapazes das raparigas e estas últimas a provocarem-lhe um misto de irritação e curiosidade. Nascia nele o desejo de as impressionar, que tentou satisfazer comprando gel para o cabelo e partindo para a praia para se bronzear. Foi então que se apercebeu, com uma dor que lhe imobilizava os músculos e dificultava o raciocínio, que onde quer que se dirigisse, era acompanhado por uma nuvem diligente e certeira, localizada exactamente sobre a sua cabeça numa linha vertical.

A partir desse dia, raros eram os momentos em que conseguia abstrair-se da presença opressiva e cinzenta, excepto quando passava horas a voltar as páginas dos livros na biblioteca, ou quando trabalhava concentrado. Em casa, ainda que protegido pelo tecto de capazes traves grossas de madeira que suportavam o peso da cerâmica das telhas gémeas, lembrava-se da sua companheira indesejada e encostava a testa no vidro frio só para ver agravada a angústia que o oprimia.

A sua estação do ano por excelência era o Inverno. Nos dias melancólicos de céu carregado e chuva intermitente, caminhava pelas ruas com passos largos e decididos, imprimindo em cada pisada uma fracção da força devolvida pelo efémero sentimento de igualdade. Deixava as gotas de água procurarem o seu lugar nos fios de cabelo até ao limite de absorção e escorrerem pela pele humedecendo a orla da t-shirt que usava invariavelmente por baixo da camisola de gola redonda.

Foi num dia assim que a viu pela primeira vez. O silêncio era interrompido apenas pelo virar de folhas. Após ter encontrado sem dificuldade o livro sobre o qual se debruçava há uma semana, dirigiu-se à mesa do costume. Encontrou-a ocupada por três livros empilhados no canto superior direito e um outro aberto, em cujas páginas tocavam as pontas de uma cabeleira loira. Sentou-se na mesa imediatamente à direita, de forma a poder recuperar o seu lugar assim que ficasse vago, mas não conseguiu concentrar-se na leitura.

No dia seguinte, o ritual repetiu-se. Ela tinha entrado na sua vida de forma indelével por uma mera questão de geografia e gostos semelhantes.


Eram duas da tarde. Esperava-o pontualmente à porta do café onde se tinha apaixonado. Não entrou, porque tinham combinado ir ao cinema e estava a aproximar-se a hora do filme. Ele chegou dez minutos depois da hora marcada e abraçou-a. Ela sorriu, franziu o sobrolho e disse “Parece que vai chover.”.

E choveu. Choveu nesse dia, no seguinte e no outro.

Tudo estava mais cinzento e, embora ela não soubesse apontar o momento exacto em que o tinha apreendido, sabia que era por causa dele. Talvez por ter repetido vezes sem conta aquela frase até ter passado a fazer parte do cumprimento; talvez por acreditar que ele era incapaz de se apaixonar. Os grandes olhos turvos que a enchiam de angústia e que ele teimava em manter abertos enquanto a beijava. Feriam-na apesar de lhe ter dito que era apenas nesse momento que via as cores em toda a sua dimensão, com o devido contraste, como se ela lhe cedesse os seus olhos esverdeados. A sensação de estar com alguém que vivia de pequenas felicidades emprestadas afligia-a e forçou-se a pôr-lhe termo.


Não estava triste ou pelo menos não estava mais triste do que era hábito. Inspirava longas golfadas de ar, expelindo-as de seguida com força. Queria libertar a frustração que lhe pesava nos pulmões e restantes órgãos, provocada pelo desconforto da perda que não chegou a ser dor. Resolveu-se a olhar para o céu e sofrer de dores de pescoço até encontrar uma mulher seguida por uma nuvem semelhante à sua. Provavelmente viria a beijá-la de olhos fechados.




15 comments:

Anonymous said...

E ela...fechava os olhos enquanto o beijava?

eli said...

Sim. Só entreabria as pálpebras de vez em quando para verificar.

Anonymous said...

Imaginava, é instintivo.
A geografia e os gostos comuns são uma mera questão, ou UMA das questões?

Anonymous said...

"Existem milhares de almas espalhadas por esse mundo fora que teriam o coração aberto para me amar. Sei-o deveras. Mas nunca me encontraram. Vão esquecer-se de mim (de quem nunca se lembraram), e vão casar-se, descasar-se, enrolar-se com “alguéns”, que não eu, porque nunca se cruzaram comigo, naquele beco onde tu te cruzaste".
A geografia é do caraças.

eli said...

Queres casar comigo?

Kufo said...

Mau!!! Mt mau. Mais de 24H para se responder a uma questao tao simples? Comeco a pensar que, apesar da beleza das palavras, a nobreza dos actos e atitudes nao anda por estas bandas.

eli said...

E que tal em lugar de discursar pomposamente, voluntariares-te para te casares no lugar dele?

Kufo said...

Mas por acaso alguem me perguntou alguma coisa? Gracas a minha boa educacao (mas nao muito catolica)nao costumo responder a questoes q nao me sao dirigidas. Que eu saiba nao sou 'anonymous'. Mas sera q com este ultimo comment estas a querer dirigir, de forma subtil, a pergunta para outro destinatario? Fica sabendo q eu nao gosto de ser o plano B. Qd muito posso ser o Plano K. Sera K da Kasamento????

eli said...

Com estas piadinhas, daqui a uns anos peço-te em casamento e depois é a história do Pedro e do Lobo, sendo eu o Lobo, ora pois claro está. E tu bem sabes o que é que o Lobo fez ao Pedro, não sabes? Portanto vê lá! AHAHAHAHAHAHH!

Kufo said...

"E tu bem sabes o que é que o Lobo fez ao Pedro, não sabes?"
Pensava que o Pedro apanhava o Lobo e toda a gente vivia feliz para sempre:)MENOS O LOBO. Ainda assim, queres ser o lobo?
E tu? Sabes do que es capaz? Sera q consegues fazer melhor do que o Lobo da historia? Ou so queres e jogar as 'escondidas'?
Como alternativa, temos tb a historia do Capuchinho Vermelho. Ai sim, eu podia ser o lobo e tu o capuchinho. So que a historia seria ligeiramente diferente. Eu respeito as pessoas mais idosas...

eli said...

Se bem me lembro da história, o Capuchinho comia o lobo, palitava os dentes com os ossos da avozinha e depois arrotava no fim. Certo?
O teu final será esse, é o teu pathos: começaste por comer uma francesinha e a meia-francesinha irá retribuir o gesto.

Anonymous said...

Meu caro já passaram de facto mais de 24 horas, mas aqui estou eu para responder à questão que me foi lançada. Aliás noto um certo tom amargo aquando da análise dos meus actos.
Minha cara era com enorme prazer que eu aceitaria essa tua proposta, até porque a julgar como escreves, estaria com certeza perante uma pessoa extremamente interessante. No entanto temo que o pequeno pormenor de não nos conhecermos dificulte um pouco a questão. Por outro lado a concorrência parece ser feroz. Julgo mesmo mais apropriado o voluntarismo do teu companheiro de blog. A quem aproveito para congratular pela qualidade dos posts que faz.

Kufo said...
This comment has been removed by the author.
Kufo said...

Duplamente satisfeito.

Satisfação por perceber que existe alguém que aprecia os posts. É essa a retribuição que pretendo obter com o meu interessado voluntarismo.

E satisfação por perceber que as provocações não caem em saco roto. Afinal, essa é umas das razoes para a existência destes posts e comments.

Só espero que tu, e muitos outros, nos continuem a dar o prazer da vossa visita e desfrutem dos posts publicados.

MEU CARO, NÃO DEIXES DE COMENTAR E PROVOCAR.

PS. Não te preocupes com a concorrência. Afinal há mercado para todos. Basta que o produto seja bom, vá ao encontro das necessidades do mercado e que este tenha conhecimento da sua existência. Dai a importância de um bom nome e de uma boa campanha de comunicação, só para enumerar alguns elementos vitais para o sucesso.

Anonymous said...

Sem dúvida!! a informação é uma das componentes principais para vingar no mercado. No entanto a ciência económica, empresarial ou de marketing deixei-a na faculdade e deixo-a para o ambiente de trabalho. Qnd se fala de pessoas (algo que acontece em mtos dos vossos posts) prefiro limitar-me ao que não aprendi nos livros.
E digam lá se isto não está a animar!! 15 comments... não está mal!